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11/09/2013

Uma injeção não erradica a pobreza

Fernanda Marques


O ano era 1956. Parcelas expressivas das populações pobres do interior padeciam de uma doença infecciosa que atingia pele, ossos e cartilagens, provocando deformidades. Era a bouba, causada por uma bactéria e hoje pouco conhecida mesmo entre médicos e profissionais de saúde. Naquela época, porém, representava um dos entraves à integração do sertão com o litoral e ao avanço do país. Defendia-se, pois, a importância das novas tecnologias médicas para curar aqueles doentes e torná-los trabalhadores aptos à agricultura modernizada. Eram os tempos do nacional-desenvolvimentismo. Esta história – que revela os meandros da saúde pública brasileira na década de 1950, em especial durante o governo de Juscelino Kubitscheck – está esmiuçada no livro Basta aplicar uma injeção?, de Érico Silva Muniz, lançamento da Editora Fiocruz em conjunto com a Fino Traço e a EDUEPB. A obra é fruto de dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e premiada pela Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC).

No Plano de Metas de JK, as políticas sociais para a área da saúde pública não estavam entre as prioridades. Contudo, desde a campanha eleitoral, em 1955, ao anunciar seu programa de governo, JK não deixou de incluir questões de saúde pública. De acordo com os planos, as endemias rurais – obstáculos ao desenvolvimento nacional – deveriam ser eliminadas com os novos recursos químicos e farmacêuticos disponíveis. “As descobertas biomédicas e os avanços tecnológicos da década da Segunda Guerra Mundial propiciavam um clima de ânimo redobrado sobre as possibilidades da ação humana na eliminação de doenças”, comenta Érico. No caso da bouba, isso se traduziu em ações que objetivavam aplicar uma injeção de penicilina em dose única para a cura dos doentes, antes isolados nos chamados "barracões dos boubáticos".

Ao se debruçar sobre a política JK de combate à bouba, o autor descortina uma discussão mais ampla (e que se mantém atual). Ele problematiza conceitos como os de controle e erradicação de doenças, e demonstra os limites de uma nova tecnologia biomédica diante da persistência dos determinantes sociais de uma enfermidade – como a pobreza e a fome. “As concepções de saúde e higiene do Programa de Erradicação da Bouba, as condições de vida das populações dos sertões do Brasil e os quadros de fome e desnutrição encontrados pelos guardas sanitários serão analisados, assim como as reorientações vividas em campo que relativizaram a meta da erradicação e o poder da injeção”, conta Érico. De acordo com o historiador Gilberto Hochman, orientador de Érico no mestrado, o livro mostra “o complexo encontro do Programa da Bouba e sua tecnologia terapêutica com os doentes, suas famílias, pobres e famélicas, com as populações do Brasil rural no período Kubitscheck”.

Ao longo de toda a pesquisa é visível um intenso diálogo entre a história social, a história das ciências e a história da saúde pública no Brasil. Assim, o caso da bouba se insere em movimentos mais gerais, como a expansão da autoridade pública no território brasileiro, gerando uma interiorização dos serviços de saúde, e a valorização da cooperação internacional – vivenciava-se, então, a Guerra Fria e fortaleciam-se agências como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). O livro traz, ainda, um balanço das endemias rurais na história da saúde pública brasileira, que estavam na agenda sanitária desde a Primeira República. Especificamente em relação à bouba, o controvertido debate sobre as origens da doença já era encontrado em teses médicas do século 19. No século 20, destacaram-se as pesquisas no Instituto Oswaldo Cruz, em especial as do médico Felipe Nery Guimarães, que realizou os primeiros testes da penicilina aplicada à bouba no Brasil – onde o programa de erradicação da doença foi influenciado pelas experiências em outros países, notadamente no Haiti.

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