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07/04/2022

Troca de saberes marcou missão de sociólogos rurais norte-americanos no Brasil

Karine Rodrigues (COC/Fiocruz)


Em fevereiro de 1942, em meio à Segunda Guerra Mundial, dois norte-americanos desembarcaram no Rio de Janeiro para missões diversas, mas coincidentes, pela associação com a Política de Boa Vizinhança do governo de Franklin Roosevelt, que apostava na negociação diplomática e na colaboração para tentar assegurar a liderança do país no Ocidente. Enquanto o cineasta Orson Welles (1915-1985) viera filmar o carnaval, o sociólogo rural T. Lynn Smith (1903-1976) fora enviado à Cidade Maravilhosa para assumir a função de analista agrícola na Embaixada Americana.  

Para Welles, chegar em plena folia foi providencial. Smith, por sua vez, limitou-se a informar por carta que a embaixada permaneceria fechada durante uma semana por causa do carnaval. Se ele gostou do que viu, guardou para si suas impressões, pois não há qualquer menção adicional sobre o episódio na documentação analisada por Thiago da Costa Lopes, mestre e doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Mas a investigação que realizou sobre a temporada do norte-americano no Brasil traz importantes informações a respeito da circulação do conhecimento sociológico produzido no Norte e no Sul do globo. 

“Geralmente, a imagem que nós temos produzida pelas ciências sociais, pensando nas leituras difusionistas da história das ciências, é que os mestres estrangeiros encontraram solo virgem no Brasil, do ponto de vista da produção intelectual. E que, a partir da entrada desses mestres, houve um salto no nosso desenvolvimento científico e intelectual. No caso da sociologia rural, o que se observa é uma troca de saberes”, destaca Lopes, que abordou o assunto em artigo na Dados – Revista de Ciências Sociais, escrito com o pesquisador da COC/Fiocruz, Marcos Chor Maio.  

Oliveira Vianna e as raízes rurais da sociedade brasileira 

Smith veio ao Brasil por designação do Auxiliary Foreign Service do Departamento de Estado, em uma iniciativa com o Office of Foreign Agricultural Relation (Ofar), escritório de assuntos internacionais do Departamento de Agricultura. Integrou o grupo de sociólogos rurais norte-americanos recrutados pelo governo e enviados a países da América latina para atividades de pesquisa e aconselhamento técnico em programas de educação, saúde, habitação e extensão rural, durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos posteriores. Naquele início dos anos 1940, no Brasil, as ciências sociais davam os primeiros passos rumo à institucionalização. Procurava-se transformar o trabalho intelectual, voltado para a análise e a compreensão da sociedade brasileira, em uma profissão acadêmica. 

Ao chegar ao país, Smith fez muito trabalho de campo, mas também se apoiou em uma produção intelectual local em busca de chaves interpretativas que o ajudassem a entender a dinâmica da sociedade rural, principalmente em obras de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), como Populações meridionais do Brasil, na qual o autor observa que o latifúndio marcou a formação social brasileira. Embora sem formação universitária na área, Vianna deu relevantes contribuições ao pensamento social para se entender o mundo rural. 

“Vianna insiste nas raízes rurais da sociedade brasileira e na importância da história para compreendermos a formação do país. Para ele, o latifúndio teria como um dos seus efeitos negativos uma cultura cívica frágil, justamente por conta da forma de ocupação do território e pela maneira como os padrões de sociabilidade vão se moldando a partir da família, pensada também a partir do grande domínio rural. Então, essa estrutura fundiária vai estabelecer uma forma de solidariedade social restrita, que liga o senhor, os seus parentes e os seus agregados, mas não consegue constituir uma sociedade civil, uma comunidade em sentido amplo”, detalha Lopes. 

O historiador observa que, por mais que o norte-americano apostasse na via comunitária, a documentação analisada revela que Smith fez concessões ao diagnóstico de Vianna, para quem a saída para o Brasil seria um estado forte, modelando a sociedade, já que grande propriedade, que está no cerne da formação nacional, teria resultado em uma sociedade de conduta particularista, pouco republicana, com dificuldade para agir em nome do bem comum 

“Smith acaba sendo interpelado pelas visões de intelectuais locais. Na verdade, há um diálogo, uma conversa intelectual que ultrapassa as fronteiras nacionais e que borra um pouco a ideia que temos tanto da cultura política brasileira, na qual as fichas são depositadas no poder público, como da cultura política americana, vista como antiestatista”, cita Lopes. 

Ameaças da modernidade à vida em comunidade 

E quais razões possibilitaram o diálogo entre Smith e intelectuais brasileiros? Aqui, o pesquisador abre um parêntesis para detalhar o perfil dos sociólogos rurais, geralmente ligados a um passado de engajamento religioso, ou, se não religioso, de cunho reformador, movidos por um espírito comunitarista.  

“Eles olham para o mundo moderno das metrópoles como um mundo de convulsões, em que os laços comunitários em nível local, da vizinhança, da família, estão ameaçados. A antiga comunidade rural entra em crise”, explica o historiador, lembrando que, nos anos 1930, as pequenas cidades norte-americanas já sentiam o impacto da forte urbanização e industrialização do país, com a difusão do automóvel, os novos padrões de consumo, a agricultura mais integrada ao mercado capitalista, o individualismo. 

Smith, por exemplo, viera de uma família rural mórmon, de fazendeiros, que se estabelece no Colorado, perto da fronteira com o México. Em sua trajetória como professor e pesquisador, entrara em contato com cenários que guardavam alguma semelhança com o Brasil. Já sociólogo rural, mantivera contato com trabalhadores rurais mexicanos. Além disso, era professor na Universidade Estadual da Louisiana, no Sul dos Estados Unidos, área com forte presença de população negra, culturalmente diversa, também com influência da ocupação dos franceses, e historicamente  marcada pela plantation, tipo de sistema agrícola baseado na monocultura e uso de latifúndios e mão de obra escrava. 

“Isso, de certa maneira, já aproxima Smith do contexto brasileiro”, observa Lopes, que começou a se interessar pela sociologia rural americana a partir da trajetória de José Arthur Rios (1921-2017). Aluno de Smith na Universidade Estadual da Louisiana, o sociólogo brasileiro foi o primeiro coordenador da Campanha Nacional de Educação Rural, lançada com o intuito de levar desenvolvimento ao homem do campo, por meio de políticas de educação e de saúde, no início dos  anos 1950. Em 2020, o historiador lançou, pela Editora Fiocruz, o livro Em Busca da Comunidade: ciências sociais, desenvolvimento rural e diplomacia cultural nas relações Brasil-EUA (1930-1950), na qual foca na trajetória de Smith e Rios. 

Autocrítica norte-americana 

No período em análise no artigo, esses norte-americanos da área das ciências sociais, ligados a setores mais reformadores, sentiam-se insatisfeitos com os efeitos da chamada civilização urbana industrial sobre a vida social, em especial, nas localidades rurais e estavam problematizando a própria sociedade americana. Nesse momento de autocrítica, apesar do olhar depreciativo que sempre recaía sobre os países latino-americanos, intelectuais como Smith passaram a ver para os países da América Latina com mais benevolência.  

“A questão para esses sociólogos é garantir que haja uma vida comunitária local em meio a essas mudanças. Aí, por incrível que pareça, eles começam a olhar de forma positiva para algumas experiências na América Latina, que sempre foi vista de forma muito depreciativa pelos Estados Unidos, com seus estereótipos raciais, a ideia de que somos primitivos, a ideia da miscigenação levando à degeneração racial”, observa Lopes, acrescentando que Smith vê aspectos locais positivos e avalia que o desenvolvimento rural em países como o Brasil não levaria necessariamente a um individualismo exacerbado ou a uma fragmentação dos laços de solidariedade, como ele estava ocorrendo nos Estados Unidos. 

Apesar de limitações e deficiências relacionadas, sobretudo, à tecnologia e ao acesso a recursos, além da presença massiva do latifúndio, os sociólogos norte-americanos consideram que experiências latino-americanas apontavam para um caminho próprio de mudança social, de caráter mais comunitário, alternativo, portanto, à modernização em curso nos Estados Unidos, com sua força desagregadora. , portanto, das leituras mais conhecidas sobre o desenvolvimento produzidas pelas ciências sociais norte-americanas, pois não compactuavam de uma visão triunfalista sobre a modernidade. 

“Acho isso interessante porque, geralmente, ficamos presos à teoria da modernização, de matriz americana, que supõe uma grande convergência para um modelo de sociedade de massas, do tipo civilizacional urbano-industrial que os Estados Unidos representavam”, diz Lopes, referindo-se à ideia de que os Estados Unidos simbolizariam o ápice da modernidade, e os ditos países periféricos estariam num estágio evolutivo atrasado, mas em algum momento conseguiriam, ou por intervenções ou por formas de planejamento, vencer o atraso, e chegar aquele patamar dito avançado de civilização.   

Diálogos assimétricos 

Embora tenha havido diálogo entre norte-americanos e os brasileiros, ele não se deu de forma equilibrada, frisa o historiador. Segundo ele, ainda que os estudiosos estrangeiros, como Smith, fossem partidários de interpretações estabelecidas por brasileiros, no processo histórico, considerando a circulação, a legitimação e a consagração dos saberes, essas trocas não necessariamente cancelaram as divisões entre o norte e o sul global. “É o caso de compreendermos como as assimetrias foram sendo construídas ao longo do tempo a despeito ou mesmo através desses diálogos transnacionais”, enfatiza. 

E o que acontece depois da Segunda Guerra, no mundo bipolar, onde se confrontam Estados Unidos e União Soviética? Lopes tem uma hipótese, que espera analisar em sua temporada de estudos na Universidade de Nova York. “É como se aquele espaço de diálogo, a possibilidade de abertura para outras experiências societais, se fechasse. Pelo menos no caso dos sociólogos rurais americanos”, avalia o pesquisador, que chegou na semana passada aos Estados Unidos, para estágio pós-doutoral como pesquisador visitante da Fullbright. Lá, pretende ampliar o foco da análise para incluir outros sociólogos rurais, em atuação no Brasil e em outros países da América Latina.  

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