Início do conteúdo

01/04/2010

Reforma da saúde: 'Os EUA começam a se preocupar com os seus pobres'

Informe Ensp


Uma aula de história da saúde americana. Assim foi a entrevista que o ex-secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, o pesquisador da Fiocruz José Carvalho de Noronha, deu ao Informe Ensp sobre a reforma do sistema americano de saúde, aprovada no dia 21 de março, na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos. O assunto também rendeu o primeiro Centro de Estudos da Ensp em 2010. Em sua palestra, Noronha falou sobre as características da reforma apresentada pelo presidente Obama, e como os arranjos de mercado para fortalecer os planos e seguradoras de saúde podem afetar o sistema de saúde brasileiro. Na entrevista, Noronha aprofunda um pouco mais cada uma dessas questões, traçando uma preciosa linha do tempo da história da saúde americana, que culminou nos embates pela universalização da saúde no governo Clinton, no início dos anos 90, e no equilíbrio das propostas de Obama, que conseguiu, enfim, aprovar a reforma. E concluiu: "No mais, fica a certeza de que o maior país do mundo começa a se preocupar com seus pobres". Leia, a seguir, a entrevista completa.


 Noronha: A luta não está terminada. Em alguns estados republicanos dos EUA, a vitória foi estreita

Noronha: A luta não está terminada. Em alguns estados republicanos dos EUA, a vitória foi estreita


Quais foram as principais variáveis que desencadearam a reforma do sistema de saúde americano?


José Carvalho de Noronha: O debate sobre a reforma do sistema de saúde americano é antigo. Os conflitos datam da própria constituição do modelo americano, na mesma época em que a Europa caminhava para proposta de sistemas universais de cobertura. Era forte a influência do modelo alemão bismarkiano, de proteção por caixas de enfermidade, de aposentadoria, introduzido no fim do século 19. Todo debate que começa no início do século tem uma intensificação na Europa, a partir da 1ª Guerra Mundial, sobretudo com a vitória do socialismo na Rússia, que cria um debate muito intenso sobre as novas formas de proteção social. Nos EUA, esse debate é mais intenso com a crise de 1929. A vitória foi da proposta inteiramente baseada na iniciativa privada, no modelo liberal americano clássico, apesar do presidente Franklin Delano Roosevelt ter certa inclinação para modelos de proteção, ou bismarkianos ou de taxação direta. É neste momento que surge o que aqui no Brasil chamamos de medicina de grupo: a BlueCross, dos planos de saúde dos hospitais americanos, e a BlueShield, dos médicos americanos. Isso é basicamente o modelo que se implanta nos EUA.


Depois da 2ª Guerra Mundial, os EUA mantêm o seu modelo liberal. E, com o crescimento da indústria hospitalar nos anos 1950, quando o hospital de fato se transforma em um grande negócio, e com o crescimento da medicina e intervenções médicas mais eficazes, esse sistema se expande e começam a surgir outras formas de organização de médicos. Enquanto em outros países, como a Inglaterra, bastava o sujeito ser residente para obter os acessos, nos EUA era preciso que ele fosse vinculado a um plano de saúde e que seu empregador contratasse esse plano de saúde para dar cobertura.


Os EUA, então, optaram pelo modelo privado. Mas novas demandas surgiram ao longo dos anos. Poderia falar um pouco mais sobre elas?


Noronha: Nos anos 60, a população americana já começava a envelhecer e o plano original, que só cobria as pessoas que tinham vínculo formal, deixava de fora um grupo de pessoas que não tinham emprego, cujo empregador não contratava um plano de saúde, além dos pobres e dos latinos (imigrantes ilegais e legais) que também não estavam associados a esses empregadores. Ou seja, um conjunto de tensões cria um clima muito forte no sentido da adoção de algum tipo de proteção estatal mais forte, além daquela que era prestada pela caridade ou por alguns estados ou por governos locais.


A grande reforma do sistema de saúde americano acontece em 1965, com o chamado projeto da Grande Sociedade do Lyndon Johnson, enfrentando uma oposição crescente à presença dos EUA na guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis contra a discriminação racial, entre outros assuntos. Somado a esse contexto, tinha também o envelhecimento da população, que gerava problemas para as pessoas que se aposentavam e perdiam a cobertura dos empregadores. Surgem, daí, dois grandes programas aprovados pelo Congresso americano: o Medicaid, para os pobres, que estão abaixo da linha de pobreza - nos EUA, estão nesta faixa as famílias que têm renda de até US$ 140 mil por ano, ou US$ 1,2 mil por mês - e o Medicare, para pessoas com mais de 65 anos. Depois, são incorporados portadores de deficiências e os portadores de doença renal crônica. Quem está no mercado de trabalho formal era coberto pelos planos contratados pelas empresas. Esse sistema americano vai aumentando cada vez mais a demanda de financiamento.


Trata-se de um sistema caro, que foi se apropriando, de forma crescente, da renda nacional. Em 1960, o sistema de atenção a saúde americano se apropriava de 5% da riqueza nacional; em 2008, esse montante saltou para 16,2% da riqueza nacional (o sistema todo de saúde). Começa a tomar corpo, sobretudo a partir dos anos 90, a ideia de conter os gastos crescentes. Até porque o resultado desses gastos não eram animadores, quando a outros países com o mesmo nível de desenvolvimento, como países da Europa, o Japão, a Austrália, a Nova Zelândia; até mesmo quando os EUA eram comparados a países como Cuba e Costa Rica. O resultado final de esperança de vida e mortalidade infantil nos EUA eram sempre piores.


O debate dos gastos públicos com a saúde é antigo. Por outro lado, mesmo gastando muito, 15% da população sem proteção nenhuma - o equivalente a 32 milhões de pessoas. Como o país mais rico do mundo, que tem esse gasto enorme, conseguia deixar 32 milhões de pessoas sem cobertura?


Noronha: Essa é a grande questão. Vem daí a demanda por justiça social, para a cobertura dessas pessoas, desses trabalhadores. O sistema estava sob o ataque de dois lados: um, pelos custos crescentes; e por outro, buscando cobertura universal. Surgem as primeiras tentativas de se enfrentar esses dois problemas de maneira articulada. Isso tudo ocorre em 1993, com o governo Clinton, quando o então presidente designa Hillary como condutora da reforma do sistema de saúde americano. E Clinton, naquela época, propõe uma reforma do setor de saúde criando mecanismos muito complicados; basicamente uma forte presença do estado regulando, inclusive, os prestadores privados. A proposta não era estatizar o sistema, mas organizar o sistema de atenção à saúde com uma mão muito forte do Estado. O objetivo é estender a cobertura à população mais desassistida e, ao mesmo tempo, criar algum tipo de mecanismo que contivesse o crescimento dos gastos do sistema de saúde americano.


Foi um grande momento quando Clinton lança a proposta no final de 1993. Logo depois, começa a ser muito torpedeado, basicamente pela associação médica americana e pelas companhias de seguro. A oposição dizia que Clinton queria estatizar a saúde. Surgiu aí uma forte campanha contra a iniciativa. O assunto, então, saiu de cena, mas continuou a pressão por outra iniciativa que pudesse conter os gastos públicos e atender, ao mesmo tempo, a população que estava desoberta.


Qual é o perfil dessa população descoberta pelos seguros de saúde?


Noronha: Essa população é composta por pequenos empresários - que acreditam que teriam um grande impacto do gasto adicional ao contratar serviços de saúde para seus empregados -, os autônomos, o pequeno fazendeiro, os trabalhadores de tempo parcial de cadeias de lanchonetes, os imigrantes legais e ilegais - são cerca de 32 milhões de pessoas.


Qual foi, então, a fórmula encontrada pelo presidente americano para amparar essa população?


Noronha: A fórmula é engenhosa e, basicamente, aumenta subsídios fiscais. Isso faz com que a população desassistida tenha algum tipo de proteção. E o faz de maneira muito peculiar. Obama desenhou a proposta de reforma junto com seu grupo de peritos durante a crise econômica de 2008. Lança um pacote muito importante para salvar a economia e coloca a saúde como um elemento importante de geração de emprego e renda. Além disso, aumenta o orçamento do Medicare e do Medicaid e um pacote de cerca de US$ 1,2 bilhão para promover estudos de efetividade comparada - um estudo para examinar as práticas correntes da medicina para os principais problemas americanos com o objetivo de rever esses procedimentos na base cientifica do sistema de saúde americano.


Depois, Obama começa a montar o que seria a proposta de reforma setorial, que prevê obrigar os pequenos empresários e pessoas que tenham renda a contratar planos de saúde. Para isso, monta um sistema de subsídios para que as pessoas comprem seus planos. O governo entra com subsídios de isenção de imposto de renda, isenção fiscal, para compensar. A família com renda anual de US$ 500 mil teria que contratar planos sem subsídios. Ele sobe o patamar do Madicaid de 100 para 130%, aumenta a faixa de renda das famílias beneficiadas, de US$ 1,2 mil por mês para US$ 1,5 mil. Acima de US$ 1,5 mil começam as faixas com subsídios para contratação dos planos de saúde. Ele cria os chamados benefits exchanges, que são mercados de organização de venda de planos de saúde, com pacotes definidos pela autoridade sanitária, onde as pessoas podem comprar o seu plano de saúde sem ser no mercado geral com uma regulação maior e maior controle e menor preço. Cria nesses mercados mecanismos de compartilhamento de risco, resseguro. Também cria multa para as pessoas que não contratarem o seguro. Essa multa é crescente ate 2019. Neste ano também, as seguradores não poderão mais se negar a fazer coberturas de pessoas com as chamadas doenças pré-existentes. Outra mudança é em relação aos dependentes. Pela lei, só se aceitava dependente de até 19 ou 21 anos; agora as seguradores tem que aceitar dependentes de até 26 anos de idade, pelo plano do pai ou da mãe.


Obama acredita que, com todas as novas medidas, poderá conseguir ganhos reduzindo gastos com o Medicare, além de um mecanismo mais eficiente de controle de gastos. O maior embate com os republicanos aconteceu em relação à versão original do pacote, que criava um tipo de Medicare para as pessoas contratarem planos dessa opção, como se fosse um INPS. A proposta original foi aprovada na Câmara, mas não passou. Então, Obama decidiu lutar pela cobertura de doenças pré-existentes e, em contrapartida, cedeu em relação à proposta do seguro universal. Outro embate grande foi em relação ao aborto. Os democratas exigiam que os planos subsidiados não cobrissem o aborto. Se alguém precisasse de aborto, que contratasse um serviço adicional. No mesmo dia em que Obama promulgou o ato também assinou um decreto-executivo determinando que o aborto estaria fora da cobertura desse sistema.


Qual é a sua avaliação em relação ao resultado final da reforma da saúde americana?


Noronha: Em linhas gerais, trata-se de um sistema basicamente privado, mas com forte regulação estatal. A luta não está terminada. Em alguns estados republicanos, a vitória foi estreita. Também foi estreita na Câmara. Obama aprovou a emenda do Senado para não correr o risco de comprometer todo o plano, caso fosse necessária nova votação. Agora, Obama acredita que os mecanismos de controle das próprias operadoras de planos privados são suficientes para evitar o crescimento descontrolado dos gastos. Também acredita que os mecanismos regulatórios que estão impostos contra o controle de preços e controle de planos serão eficazes para evitar o crescimento absurdo dos gastos. A critica que os republicanos fazem é que mais gasto público, mais presença de Estado, está invadindo a área da saúde. Tem todo um discurso ideológico de fundo.


Por outro lado, com os subsídios, vai haver uma oferta de mercado de planos de saúde, através desses exchanges, a preços inferiores. As seguradoras não ficaram muito contentes com esse arranjo porque terá um conjunto de planos privados com regulação. A associação médica americana aprovou porque aumenta a clientela; a indústria farmacêutica não se aborreceu muito porque aumenta o mercado para base dos produtos. Os hospitais tiveram atitude dúbia porque serão submetidos a controle de despesas.


De que forma as mudanças resultantes da reforma americana poderão afetar o Brasil?


Noronha: Acredito que não há a menor possibilidade de o Brasil seguir o mesmo caminho dos EUA. Nem do ponto de vista político, nem dos pontos de vista técnico, econômico, financeiro, nem do ponto de vista social. Nos EUA, existem pessoas que defendem o sistema universal. Há democratas que defendiam a expansão do Medicare e do Medicaid. Seria um sistema mais próximo ao SUS. Há pessoas que defendem a socialização completa do sistema. A única coisa boa é que, dessa forma, os EUA demonstram que o país mais rico do mundo não aceita que cidadãos americanos fique sem cobertura de saúde. Para o resto do mundo, lança a ideia de que o plano não pode ter exigências em relação a portabilidade e doenças pré-existentes, por exemplo. Por outro lado, não temos condições de investir na saúde cerca de 16% da riqueza nacional - creio que se chegarmos a 10% será um ganho importante. Continuamos nos espelhando no sistema de saúde inglês, cubano, sueco, espanhol. No mais, fica a certeza de que o maior país do mundo começa a se preocupar com seus pobres.


Publicado em 1º/4/2010.

Voltar ao topo Voltar