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22/03/2012

Psiquiatrização da vida e o DSM V: desafios para o início do século 21

Paulo Amarante e Fernando Freitas*


Crianças que fazem muita birra sofrem de um distúrbio psiquiátrico recentemente descoberto, a chamada “desregulação do temperamento com disforia”. Adolescentes que apresentam, de forma particular, comportamentos extravagantes podem sofrer da “síndrome de risco psicótico”. Homens e mulheres que demonstram muito interesse por sexo, quer dizer, aqueles que têm fantasias, impulsos e comportamentos sexuais acima da temperança recomendada, muito provavelmente padecem do distúrbio psiquiátrico chamado “desordem hipersexual”.

 

 

 Para os autores do artigo, o DSM representa a medicalização crescente do cotidiano
 Para os autores do artigo, o DSM representa a medicalização crescente do cotidiano

 
Essas são algumas das várias novidades que estão sendo propostas pela Associação Americana de Psiquiatria (conhecida internacionalmente como APA), para suceder o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), em vigor desde 1994.  Há outras novidades que vem chamando a atenção de todos. Por exemplo, a “dependência à internet” e a “dependência a shopping”.
 
O que o DSM representa? Não apenas para a saúde pública propriamente dita, mas para a própria construção da subjetividade e intersubjetividade do homem contemporâneo? A medicalização crescente do nosso cotidiano. Apenas para se ter uma ideia da chamada “inflação” dos distúrbios considerados objeto da psiquiatria: há cinquenta anos eram seis as categorias de diagnóstico psiquiátrico, e hoje são mais de 300.
 
Nas últimas décadas o DSM tem servido como a bíblia para a chamada psiquiatria moderna e para os saberes e práticas subordinados a sua hegemonia. Os autores de suas sucessivas edições argumentam que suas pretensões são: (1) Fornecer uma “linguagem comum” para os clínicos; (2) servir de “ferramenta” para os pesquisadores; (3) ser uma “ponte” para a interface clínica/pesquisa; (4) ser o “livro de referência” em saúde mental para professores e estudantes; (5) disponibilizar o “código estatístico” para propósitos de pagamento dos serviços prestados e para fins administrativos do sistema de saúde; e, finalmente, (6) orientar “procedimentos forenses”.
 
Os impactos provocados por cada edição do DSM são inúmeros. Bem próximo de nós está o exemplo da pesquisa da OMS sobre a saúde mental dos moradores da metrópole de São Paulo. Segundo os resultados dessa pesquisa, cerca de 1/3 da sua população sofre de algum distúrbio psiquiátrico. A grande imprensa nacional tomou tal pesquisa para chamar a atenção da população para a situação do sistema de assistência em saúde mental do país, que estaria muito aquém das demandas dos cidadãos, muito em particular o SUS.  E que, sendo São Paulo uma megalópole de um país com tendências à urbanização acelerada, o seu exemplo deve ser considerado como alarmante.
 
O que escapa à maioria das pessoas que receberam essa notícia pela grande mídia são detalhes de grande importância para a credibilidade da própria pesquisa. Quem financiou essa pesquisa (além da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo), entre outros órgãos públicos, como a própria OMS e a Opas) foram grandes conglomerados da indústria farmacêutica: Ortho-McNeil Pharmaceutical, a GlaxoSmithKline, Bristol-Meyers Squibb e Shire. Curiosamente, os autores declaram não haver conflito de interesses. Se isso não é conflito de interesses, então é necessário revisar esse conceito!
 
O DSM-V chega sendo objeto de grandes controvérsias. Basta uma consulta na internet para se tomar conhecimento das contundentes críticas feitas por alguns dos principais autores do DSM-III e DSM-IV. O que o DSM-V vem reforçar ao DSM-IV? Parece ser a tendência à medicalização dos comportamentos humanos de nossa época, ao transformá-los em patológicos em seus mínimos detalhes. Nos termos que vêm se tornando públicos, o DSM-V reforça a tendência de assegurar e ampliar o mercado da saúde mental: 1) o consumo arbitrário de medicamentos de natureza psicotrópica, sem qualquer cuidado com os seus efeitos sobre a própria saúde de seus consumidores; (2) a expansão de serviços de diagnóstico e de consultas; (3) a medicalização da vida.
 
Na medida em que o modelo “a-teórico” (como ele mesmo se define) do DSM nos possibilita constatar, principalmente a partir dessa sua quinta versão, que seu objetivo real não é lançar luz sobre o conhecimento dos sofrimentos mentais, e, sim, produzir mais mercado para as intervenções psiquiátricas, cumpre à sociedade recusar esse projeto medicalizante e patologizante. As entidades de saúde, particularmente as médicas, os Conselhos de Saúde e de Direitos Humanos, os órgãos públicos de normalização, regulação, fiscalização (Ministério da Saúde, Ministério Público, conselhos profissionais, dentre outros) precisam se posicionar e cobrar a responsabilidade dos autores e multiplicadores de tais iniciativas.
 
* Paulo Amarante é presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Ensp/Fiocruz)
 
* Fernando Freitas é diretor da Abrasme e pesquisador do Laps/Fiocruz

 

 

Publicado em 21/3/2012.

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